O Sal da Terra

14/05/2011 14:15

 Com cada bem-aventurança, o abismo entre os cidadãos do reino e o mundo dos homens comuns se alargou. Jesus emitiu um nítido chamado a seus discípulos para que fizessem uma saída moral e espiritual de uma sociedade dominada pelo orgulho e paixão. E esta separação para uma nova vida deveria ser conclusivamente selada pela própria reação amarga do mundo. Eles seriam caluniados, assaltados e rejeitados. Os modos gentis e humildes deles jamais seriam suficientes para aquietar a sensação de embaraço, desconfiança e medo que seu comportamento justo evocaria. O rompimento deveria ser completo.


Entretanto, ironicamente, o próprio povo que se tornou, com efeito, a escória da terra, na realidade, é a única esperança do mundo. Assim como as bem-aventuranças delinearam o caráter dos cidadãos do reino celestial, assim agora as similitudes (Mateus 5:13-16) tornam claro o chamado deles. Ainda que apartados para Deus e distintamente separados da sociedade dos outros homens, eles são, contudo, relacionados com o mundo de um modo muito especial.

O tempo, de algum modo, tem acabado o absurdo aparente desta cena na encosta galiléia. Jesus está dizendo a este grupo comum de homens e mulheres que eles foram marcados para preservar e iluminar o mundo. Eles tinham pouco dinheiro, nenhuma posição mundana, e nenhuma perspectiva. Algumas cabeças "sábias" devem ter-se divertido muito com toda esta conversa pomposa. Visionários levantaram-se na nação, criavam uma excitação momentânea e evaporavam (Atos 5:35-37). As pobres perspectivas deste movimento fizeram com que até as visões sem esperanças de um Teudas ou um Judas da Galiléia parecessem positivamente promissoras.

Contudo, o tempo iria revelar um admirável final. As coisas que pareciam tão duráveis, naqueles dias, se desvaneceram. O Império Romano desmoronou. A academia de Platão se fechou. As escolas dos estoicos e dos epicureus esmaeceram em uma curiosidade. A grande biblioteca de Alexandria incendiou-se. Mas a companhia dos cristãos resistiu. Eles ainda não possuiriam grande riqueza ou posição mundana, mas sua mensagem estaria muito viva e seu espírito vivaz. Vidas podiam ser mudadas por toda parte.

Não nos surpreenderia que aquele que veio para salvar a uma humanidade perdida (Lucas 19:10) puxasse todos os seus discípulos para aquele grande empreendimento. Sua tarefa era tornar-se a tarefa deles; sua paixão, a paixão deles.

"Vós sois o sal da terra" (Mateus 5:13). "Vós sois a luz do mundo" (Mateus 5:14). As metáforas que Jesus escolheu para ilustrar a natureza crucial do chamado do reino foram confeccionadas com materiais caseiros comuns. Nenhuma casa da Palestina deixava de ter algum sal, ou uma lâmpada para espantar a melancolia da noite. O mundo dos homens, por causa do pecado, estava apodrecendo na escuridão. Os cidadãos do reino do céu estavam destinados a serem o sal para impedir a putrefação do pecado e a luz para penetrar seu escuro desespero. Jesus advertiu ainda seus discípulos que o mundo que eles pretendiam preservar, eles também tinham que perder.

O reino do céu não pretendia-se fechar sobre si mesmo, como um mosteiro gigante. Não fora pretendido que os seus cidadãos vivessem em grande isolamento. Ainda que não sendo do mundo, eles teriam que estar muito dentro do mundo (João 17:14-15). Seu Mestre foi sempre um homem do povo. Sua vida foi vivida no meio de multidões apinhadas da Palestina. Ele sempre foi acessível, sempre vulnerável, sempre interessado. Ele passava o seu tempo entre os sofredores e os aflitos (Lucas 15:1-2). Isto é algo que os cristãos jamais devem esquecer. Podemos ser perseguidos como ele foi (João 15:19-20), mas jamais devemos permitir que nossa dor cesse a nossa compaixão. Podemos estar cansados às vezes, como ele esteve, mas jamais poderemos permitir que nosso cansaço nos afaste das necessidades de outros. O reino lá de cima pode verdadeiramente ser uma cidadela contra o pecado, mas tem que ser sempre o refúgio para o pecador.

"Se o sal vier a ser insípido" (Mateus 5:13). Os cidadãos do reino, ainda que muito mergulhados no mundo, jamais devem tornar-se mundanos. O sal não pode perder sua salinidade (Lucas 14:34-35; Marcos 9:50). Seu sabor depende da santa distinção de suas vidas e caráter. A paixão pela justiça jamais pode ser comprometida ou então a utilidade do discípulo chega ao fim. Ainda que o sal, de fato, não pode deixar de ser salgado, ele pode, como o pó salgado que se forma nas praias do Mar Morto, tornar-se tão poluído que seja tão inútil como o pó da estrada. Se, por concessões feitas ao mundo o sal for lavado de nós, deixando apenas um resíduo de mundana respeitabilidade, belos edifícios, círculos sociais agradáveis e rituais vazios, nós, também, nos tornaremos totalmente sem valor!

Um pensamento final. Tão importante como é, para os cristãos, adorar a Deus de acordo com sua vontade, temos que nos lembrar de que os homens perdidos não serão levados a glorificar a Deus porque nós tomamos a ceia do Senhor cada domingo. Eles podem, na verdade, serem levados a exaltar a Deus pelo amor quieto com que suportamos uns aos outros (João 13:34-35), pelo nosso auto-controle quando enfrentamos grande provocação, pela nossa calma segurança em presença da tragédia, e nossa firme recusa a sermos arrastados para um mundo de insensatas concupiscências. Se ganhamos a vitória sobre um sistema mundano de orgulho e carnalidade (1 João 2:15-17; 5:4) isso certamente aparecerá e Deus, não nós mesmos, será glorificado.